No momento eu não consigo vir aqui com a frequência que eu gostaria. Bem, talvez eu nunca consiga acertar este passo. Mas venho aqui, com alguma inspiração, partilhar, por saber que algumas pessoas esperam e me pedem.
Eu havia comentado na parte anterior sobre reconhecer o meu movimento de fazer tantas coisas pelos outros, gratuitamente. Uma amiga disse que eu havia sido muito dura comigo mesma. Em parte, é verdade: de acordo com as linguagens do amor, oferecer tanto aos outros (dar presentes, por assim dizer) é uma das formas de manifestação de carinho com a qual algumas pessoas se identificam. Deve ser o meu caso; mas isso não muda muito o fato de que eu exerço isso de forma genérica (o que, certamente, não é bom).
Agora, talvez, venham as partes mais difíceis de partilhar. Eu poderia definir tudo o que vem a seguir como “eu estava no lugar errado“. Se eu não estava simplesmente sendo eu mesma, ficaria extremamente difícil ser acolhida genuinamente. Foi basicamente o que aconteceu.
Um contexto: eu saí da minha cidade há 10 anos. Deixei Salvador e vim morar no interior de São Paulo, em parte, porque depois de me converter fizemos amizade dentro de um grupo tradicionalista e estávamos doidos para fazer parte de alguma coisa. Eu já havia mudado tanto a mim mesma nos últimos dois anos que nem mesmo a cidade onde nasci parecia ter a ver comigo. Eu nunca fui uma pessoa rodeada de amigos; perdi a convivência de alguns deles depois de me posicionar nas redes sociais sobre política e religião (eram postagens ridículas, para dizer o mínimo. Analisando atualmente eram completamente despropositais, mas sigamos, já que minha opinião sobre o que eu compartilhava naquela época daria um livro).
O que aconteceu assim que eu pisei na cidade foi que as pessoas (chamávamos de amigos) do grupo tradicionalista começaram a nos tratar mal: pequenas hostilidades, podemos dizer. De repente faltar uma reunião tornou-se uma espécie de traição. Mas não foi apenas isso: a gente incomodava em tudo com a nossa “normalidade”: acho que apenas ficou claro que não éramos tão tradicionais quanto as aparências demonstravam (na internet, principalmente). Enfim, cerca de 3 meses depois já vivíamos isolados na cidade, o que significava literalmente não ter convivência com ninguém, exceto nós mesmos. Nessa época a minha filha tinha 4 meses.
Ora, eu passei boa parte daquele resto do ano chorando. Fazia planos mirabolantes de voltar para Salvador, imaginava-me ligando para o meu pai e suplicando por ajuda e de fato cheguei a escrever pelo menos uns 3 rascunhos de e-mails explicando que eu preferia voltar a morar na periferia de Salvador – rodeada de vida – do que permanecer na casa nova que meu pai havia nos dado em outro estado. Eu havia sido boba, ingênua, burra; mudar a estrutura básica da minha vida por causa de pessoas que mal conhecíamos? Só que não tinha sido exatamente por isso. Nós mudamos porque, em primeiro lugar, havíamos feito o movimento de renegar a nós mesmos. Depois que você faz esse tipo de coisa, é só colher os frutos. Foi isso.
Naquela época eu queria me parecer com aquelas pessoas que eu tanto admirava. Porque, enfim, a internet estava cheia de gente com o mesmo movimento que eu: achando mística a conversão depois de Bento XVI; de repente eu conheço um monte de gente que é daquele jeito há anos, que era mesmo uma família católica modelo? Eu precisava colocar em prática tudo que estava planejado na minha cabeça: só que não havia plano algum. Eu nunca pensei demoradamente sobre nenhuma questão crucial, no sentido de chegar àquela conclusão. Tudo o que eu fiz foi me deter longamente sobre elas depois de já tê-las aceitado para a minha vida.
Portanto, não é que eu tenha perguntando a mim mesma alguma coisa, criticamente. Eu só embarquei nessa de que seria esposa, mãe e dona de casa e passei então a escrever sobre isso com uma certeza sobrenatural. Mas voltando à minha decepção quando cheguei na cidade: em 2013 nós decidimos interromper nosso processo de afogamento no tradicionalismo. Foi muito simples, na verdade. Não tinha nada a ver conosco. Ir de paletó para a missa aos 23 anos era realmente ridículo. Sair disso me pareceu muito mais fácil no que entrar, naquele momento. Claro que eu estava enganada.
Eu vou pular a parte em que tive problemas no meu casamento devido ao choque de uma vida real nesse propósito de vida tradicionalista católica (talvez exista um momento melhor para partilhar sobre isso). Mas houve sim uma crise dos dois lados. Permanecemos juntos porque nosso amor e amizade eram anteriores à mudança, e passado o período de confusão, conseguimos admitir para o outro que só gostaríamos de voltar a ser quem éramos,e foi um alívio perceber que estávamos na mesma página. Isso nos fortaleceu nos anos que seguiram.
Quando você anda a esmo, sempre para frente, pode atingir distâncias numa velocidade incrível, já que não há rota e nem raciocínio lógico entre as curvas. Todavia, se você decide voltar em determinado momento, já não pode calcular o tempo de ida como o tempo de volta. Eu não tinha domínio algum sobre o caminho que havia me levado até ali: isso era o mais difícil de admitir. Como e por que eu havia tomado aquelas posições definitivas sobre quem eu era e a forma como pensava? Por onde mesmo que eu passei quando decidi ser isso? Como eu devo proceder agora para deixar isso para trás e me encontrar novamente?
Deixa eu falar para vocês: levou anos. Em 2014, 2015 eu já estava bem mais feliz e quase passaria como uma pessoa normal no mundo aí fora (risos). O problema, falando abertamente, é que eu havia me casado e já tinha dois filhos, de modo que a minha vida era crucialmente séria demais para eu achar que era só “abandonar” aqueles hábitos adquiridos. Quando tudo começou, eu era uma moça jovem, sem compromissos com grandes coisas, parecia ser somente um novo e melhor modo de vida e de pensamento para mim (e para o meu namorado/noivo). Casada, eu me sentia vulnerável depois de tudo. Eu tinha medo: medo de pecar, medo de mudar, medo de pensar, medo de errar. Não havia sobrado muita coragem àquela altura.
Foi mais ou menos nessa época que eu destruí um dos meus diários. Ele havia sido minha companhia nos anos mais difíceis, mas reler aquelas passagens mexia muito comigo. O simples reconhecimento da capa do diário entre as estantes fazia com que eu passasse o resto do dia triste, sombria, querendo reviver os sofrimentos. Não me arrependo porque no dia em que me livrei dele, também deixei para trás muitas questões. É engraçado pensar nisso agora: mesmo que seja para destruir e eliminar depois, aquele diário serviu para um propósito: dar um passo tímido para o desapego; eu que sempre guardei tudo!
Perder os amigos e de certa forma a comunidade que fazíamos parte naquele início de casamento nos colocou de volta em algum trilho, mas ainda restava o fato de que, sem referências, precisávamos construir um meio social. Para o meu marido foi fácil: ele estava sempre trabalhando. Eu, por outro lado, passei momentos de isolamento. O que eu tinha? Nada. Lembro de um dia, sentar no colo do meu esposo e dizer-lhe: “Eu não tenho nada. Não sou mais uma pessoa interessante”. Claro que ele me encheu de beijos e tentou me animar. Mas, dois dias depois, nós conversamos abertamente e concordamos que eu precisava sair daquele confinamento.
Eu já contei boa parte da trajetória em outros textos. Como trabalhei fora um tempo. Como estabeleci contatos dentro de grupos e encontros. O que eu gostaria de chamar a atenção, neste ponto da minha partilha, é o seguinte: a vida real não te trapaceia como o fazem as ideias que colocam na sua cabeça. Se você parar, como eu estou fazendo agora, para contar a sua própria história, e narrar os fatos, e tentar aprender com eles, vai identificar os frutos. O fato é que todas as mulheres em isolamento, como eu naquela época, entram em depressão, se sentem tristes e ou inúteis; e nada do que você diga a si mesma em textos emocionantes na internet vai mudar a maneira como você realmente se sente.
O rompimento ainda não havia acontecido, para mim. No final, eu não havia aprendido grandes coisas com as pessoas que haviam nos rejeitado quando chegamos aqui. Eu ainda não havia percebido que o problema seria todo e qualquer meio no qual eu entrasse e fosse implícito que todos deveriam caminhar para a mesma direção ou se eu estivesse diante de pessoas com preocupações extremas sobre si mesmas e os outros. Eu dei exatamente aquele passo que algumas pessoas dão quando se deparam com certos radicalismos: eu tentei bater em outra porta.
Hoje há uma grande distância entre mim e as pessoas que nos receberam quando chegamos em São Paulo, então, eu posso falar sobre o assunto sem causar qualquer mágoa ou provocar qualquer ofensa, já que o longo tempo que passou faz com que a minha opinião, neste contexto, não tenha mais relevância para as mesmas pessoas. Mas eu deveria mesmo ter aprendido mais com elas. Porque, em certo sentido, elas eram de facto o que muitas dessas famílias de internet desejam ser; elas eram a realização da meta: famílias católicas, fechadas, criando os filhos com radicalismos (incluindo a cultura normal da vida), só vivendo o ideal da família/igreja doméstica. E o que eu tinha visto não funcionava.
A primeira coisa que não funcionava mesmo era a amizade. Essas pessoas têm verdadeiro receio de estabelecer familiaridade com alguém que possa colocar qualquer um de seus ideais à prova. Porque você precisa entender que na raiz do modo como elas levam a vida está o caso de que elas acreditam que não há outra maneira correcta de levá-la. A vida dessas pessoas não é circunstancial, mas corresponde a ideais bastante estabelecidos. Uma das premissas de tais ideais é que fazer de outro modo (leia-se: as outras pessoas) é errado, muito errado mesmo. E dentro de uma equação assim é improvável que uma amizade sincera possa ser estabelecida.
A maior parte das pessoas aí fora- mesmo as que planejaram a vida, mesmo as que são capazes de dizer que cada decisão relevante foi calculada – encara com naturalidade a vida dos outros. Bem, não é assim com tradicionalistas e pessoas com ideias radicais diversas sobre religião. Elas são ensimesmadas. Enquanto você pode viver suas decisões com um bom nível de privacidade, elas estão a todo momento deixando claro, de uma maneira ou de outra, que o fogo do inferno é o destino de todos aqueles que agem diferente (ou com liberdade). Se o que o outro faz é tão horrível que mereça esse destino, como pode ser possível haver uma amizade? Veja: conheci pessoas que não pisavam na missa nova senão para comungar. Que opinião acha que elas têm sobre as pobres almas que levam aquela celebração a sério?
Fomos descartados não obstante fôssemos jovens casados desorientados, sozinhos na cidade, com uma filha bebê e sem emprego. E passamos maus bocados naquele início… depois aprendemos a agradecer por tudo o que passamos, mas foi uma fase de perplexidade. Eu ainda não sabia que era uma lógica a se repetir algumas vezes: e era uma lógica difícil de assimilar. Porque ao encontrar pessoas comprometidas nominalmente com o bem, você acredita que esse bem está acima de diferenças. Você acha que será como a parábola do Bom Samaritano: a pessoa irá ajudar quem estiver ao alcance. Bem, acontece que não é assim…
Continua…